O marxismo,
desde o seu surgimento no séc. XIX, tem entendido que os grandes males do mundo
moderno surgem através da estruturação do modo capitalista de produção. A
partir disso, as teorias revolucionárias propõem uma mudança sistêmica capaz de
estabelecer uma pretensa sociedade igualitária. A esquerda mundial, ainda hoje,
enxerga-se como a articuladora do “anticapitalismo”, mas é incapaz de entender
que esta não é uma pauta exclusiva da militância socialista. O
sistema capitalista foi criticado incisivamente por fascistas, nacional-socialistas
e também por tradicionalistas. Todos entendem os seus erros, mas cada um, ao
seu modo, oferece soluções distintas e opostas ao problema moderno.
O anti-capitalismo
marxista, em certo aspecto, reconhece que o processo de alienação social está
associado ao individualismo antropológico. Esta concepção do homem, contudo,
nasce com o advento da Reforma Protestante, em radical oposição ao ordenamento
medieval. No auge da “Cristandade”, a “comunidade” se sobrepõe ao “indivíduo”.
De maneira similar, nos processos de pensamento, a Razão, entendida como
faculdade individual e acessória, curvava-se ao intelecto transpessoal
representado pelas organizações clericais protetoras do “dogma”. O indivíduo
enquanto tal era uma célula de um organismo vivo muito maior e mais amplo. Enxergar-se
como parte de um corpo tradicional, de uma comunidade de almas, era o que
mantinha viva e dinâmica as sociedades cristãs do período medieval. O
protestantismo inverte esta hierarquia elevando a faculdade da Razão, junto com
outras funções cognitivas individuais, como autossuficientes em si mesmas. Representou,
assim, a vitória do indivíduo frente à comunidade, dando forma a uma nova
interação social, marcada pelo império individual e a supremacia da
consciência livre. Preparou a “emancipação dos dogmas religiosos”, base das
revoluções modernas.
Vale destacar que toda a filosofia política
medieval esteve ancorada por um ideal e busca constante pela unidade. Amparada
na concepção do corpo eclesial enquanto realidade universal, a sociedade era
vista como um composto hierárquico e orgânico, também de abrangência universal,
alicerçada numa vontade divina e com os olhos voltados a uma vocação
transcendente. Neste integração, numa mescla de reconhecimento religioso com
organização social, cada membro é entendido como uma realidade atomizante
subordinada a uma hierárquia estrutural, da qual emana a vida e a paz da
própria sociedade. Entetanto, não seria correto acusar os teóricos medievais de
um fatalismo naturalista, ainda que de forma inegável houvesse um espaço para a
hereditariedade. Esta concepção social sempre favoreceu a uma clareza sobre o chamado
espiritual, de vocação pessoal, atrelada ao seu papel no desenvolvimento da
comunidade integrada ao corpo eclesiástico. Christopher Dawson, em “Criação do
Ocidente: A Religião e a Civilização Medieval”, afirma:
"A cidade medieval, por outro lado, era
essencialmente uma unidade - uma unidade visível e tangível, agudamente
definida pelos contornos de seus muros e torres e centrada em torno da grande
catedral, a visível expressão da fé e do propósito espiritual da comunidade.
(...) Assim, a cidade medieval se estruturava como uma comunidade de comunidades,
na qual os mesmos princípios de direitos corporativos e liberdades outorgadas
eram igualmente aplicados ao todo e às partes. A ideia medieval de liberdade, a
qual encontra sua expressão mais elevada na vida das cidades livres, não se
apresentava como o direito do indivíduo para seguir sua própria vontade, mas
tratava-se do privilégio de compartilhar, de forma altamente organizada, da
vida corporativa, a qual tinha sua própria constituição e o direito de
autogovernança."
Sendo a Religião o
âmbito estruturante de todo o corpo social tradicional, são as mudanças neste
âmbito que afetam os restantes, a ele subordinados. Assim, a independência do
indivíduo não produz apenas uma multiplicação de “seitas” religiosas, mas
também de escolas e sistemas de pensamento, ao ponto de cada “filósofo” ter o
seu próprio. O marxismo é um ramo saído séculos depois desta exata tendência. Contudo, isto ainda passa ao largo da
perspectiva marxista. Ele tende a enxergar a relação entre Infraestrutura (economia)
e Superestrutura (cultura, ideias, leis etc) a partir de um esquema em que a
Superestrutura é reflexo da Infraestrutura. Daí sua esperança de mudar
condições culturais agindo nas condições materiais. O “espírito” para ele é
apenas “epifenômeno” da matéria, de interações na ordem material. Logo, mesmo
quando tenta ampliar a perspectiva para abarcar fenômenos como a religiosidade,
subordina-a à matéria, incorrendo num erro ainda maior.
O marxismo reconhece
os males causados pela vitória do individualismo, mas, por seu substrato
materialista e anti-ontológico, propõe, em contrapartida, como resposta à alienação
causada pelo capital, uma paródia satânica da noção transcedente da comunidade
orgânica. A nova Igreja, a nova Ummah, encarna-se no igualitarismo ideológico
socialista e tem no Estado o grande centro de culto e devoção. Em certo
sentido, o marxismo transpõe para o contexto partidiário todas as notas
características da devoção religiosa. Talvez, já reconhecendo que apenas a
experiência do espírito é capaz de forjar uma verdadeira comunidade, o marxismo
criou a sua própria mística, centralizada nos sacramentos socialistas e na
criação de um novo ethos proletário. Entretanto, o que se viu, ao longo das
muitas experiências socialistas, é que a teoria marxista está impossibilitada
de dar uma resposta eloquente ao problema do capital. O seu erro é reproduzir o
mesmo substrato gnosiológico do capitalismo, isto é, o materialismo.
O anti-capitalismo
socialista foi incapaz de gerar transformações sistêmicas verdadeiras,
refletindo a sua também incapacidade de reconhecer a vida do espírito na
condição humana. Porém, vale destacar que a crítica ao capital, como feita por
Marx, sequer era uma exclusivade dos seus seguidores. O fascismo e o nacional-socialismo
eram árduos críticos do “capitalismo burguês”, considerado um protomor de
imoralidades e uma máquina voraz. Talvez, por isso, alguns coloquem o nazismo como
parte do espectro de “esquerda”, o que seria uma afirmação totalmente leviana,
tendo em vista que o discurso anticapitalista do nacional-socialismo
se distinguia, em essência, às críticas soviéticas.
Os movimentos
tradicionalistas também se opõem ao capitalismo. Reconhecem que o império do
indivíduo se confronta com a experiência tradicional comunitária. Da mesma forma, o
sistema de consumo possibilitado pela dinâmica do capital, inevitavelmente,
gera uma vitória do materialismo frente ao espírito. O tradicionalismo passa a
defender, como solução real, o retorno a um ordenamento social no qual haja o
império da realidade ontológica. Em certo sentido, a experiência iraniana, com
o advento da Revolução Islâmica, enquadra-se dentro desse espectro ideológico.
Os grandes intelectuais xiitas do séc. XX, como Ayatollah al-Sadr, Ayatollah
Mutahhari, Allamah Tabataba’i, Imam Khomeini, eram todos críticos do
capitalismo e do socialismo. Enxergavam, contudo, a ameaça marxista como
um perigo muito mais iminente, porque entendiam que o seu “monopólio” da
revolução e a sua visceral oposição à religião eram perigos reais e muito mais
danosos do que o liberalismo burguês.
Para Mutahhari, um
dos teóricos da Revolução e radical crítico do islamo-marxismo shariatiano, a
verdadeira luta era a luta profética, orientada para Deus em Deus. Em seu
pensamento, o indivíduo é um átomo do corpo social organizado, algo
similar à noção da Cristandade medieval. A verdadeira reforma parte
dessa massa popular e não das elites governantes, através do processo de
elevação espiritual e pessoal. O indivíduo é, portanto, antes de mais nada, um
crente que faz parte do sistema comunitário, uma ideia que muito se afasta do
pensamento liberal do Ocidente.
Enquanto
para Shari'ati os imperialistas e capitalistas
eram os reais inimigos e os marxistas eram concorrentes, para
Mutahhari, todos eram inimigos. Os seus ataques mais
efetivos foram contra o marxismo e o materialismo, criticando
não apenas os elementos socialistas no pensamento shariatiano, mas
também as organizações militantes, como os Fada'iyan-i Khalq e Guruh-i
Furqan, das quais a primeira em particular tinha influência sobre os
jovens. Ao atacar o marxismo, Mutahhari visou o ponto mais fraco de uma sociedade
religiosa, seu materialismo. Ele abordava constantemente o tema da
incapacidade do marxismo em reconhecer certos princípios
básicos da natureza humana. Ainda que sem nenhuma referência direta
ao Imam Khomeini, Mutahhari reproduzia o pensamento do líder revolucionário, o
que depois foi comprovado quando da vitória revolucionária seguida da proibição
de partidos marxistas nos país. A visão de Khomeini para o Irã era singular.
Diferentemente dos outros países do terceiro mundo, não se inclinava nem para
o Oriente nem para o Ocidente, nem ao comunismo nem ao capitalismo.
Era, portanto, essencialmente independente e essencialmente iraniano. Khomeini entendia, como se pode notar em seu “Livro Verde”, que o
retorno a um governo fundamentado no Alcorão e na sabedoria profética, era a
resposta mais eficiente para solucionar os problemas do Irã causados pelos
erros modernos impostos pelas potências imperiais: liberdade, igualdade,
anarquismo, niilismo, socialismo, naturalismo.
“No século passado, durante o qual a medicina europeia foi introduzida
no Irã, nossos líderes esqueceram nossa medicina tradicional e encorajaram um
punhado de jovens inexperientes a estudar essa maldita medicina européia. Hoje
percebemos que doenças como tifo, febre tifoide e coisas do gênero são curáveis
apenas por remédios tradicionais.”
Pode-se comparar
o pensamento de Khomeini, como toda a produção intelectual iraniana
revolucionária, com alguns aspectos das teorias de Aleksandr Dugin. A tensão
escatológica posta pelo pensador russo como fator propulsor de uma nova teoria
política, nascida das cinzas dos antigos regimes democráticos, coaduana-se,
ainda que por vias indiretas, à noção identitária iraniana, como imaginada por
Khomeini. Num alvorecer anti-capitalista e anti-comunista, no qual a democracia
já é incapaz de dar respostas eloquentes ao drama da modernidade, a
religião ressurge. Nessas culturas secularizadas, o espírito de uma
tradição adormecida ainda permanece. Em certo sentido, é correto afirmar que a
Revolução Islâmica antecipou o que Dugin defenderia,
ao reconhecer os princípios essenciais da cultura e transformá-los em força
revolucionária fundamentada nas tradições espirituais.
A esquerda em seu
anti-capitalismo, talvez seja a resposta mais simplória ao problema da
modernidade. Apesar de reconhecer os seus males, propõe uma remédio incorreto
não apenas pelos seus erros antropológicos, como também por reproduzir o mesmo
materialismo que fundamenta o desenvolvimento do individualismo burguês. O
fascismo, por sua vez, não se diferenciou profundamente do marxismo,
já que também elaborou uma extensa crítica ao capitalismo, mas de igual
maneira soerguida sobre noções obtusas, como um trabalhismo totalitário e o
mesmo império religioso do Estado e da raça. Já a crítica católica ao capitalismo, ainda reconhecendo a
desumanização causada pela mercantilização das relações humanas, distancia-se
de qualquer solução materialista dada pelos regimes ideológicos. O posicionamento
católico, como se encontra no pensamento magisterial e em autores como G. K.
Chesterton, entende que o regime do capital possibilitou a desagregação
familiar e o fim da intimidade parental, fundada na experiência tradicional doméstica.
Chesterton assim diz em “Three Foes of the Family”:
“Foi o capitalismo que forçou uma disputa moral e uma competição
comercial entre os sexos, que destruiu a influência dos pais em favor da
influência do empregador, que levou os homens de suas casas a procurar emprego,
que os obrigou a morar perto de suas fábricas ou de suas empresas, em vez de
perto de suas famílias, e, acima de tudo, que encorajou, por razões comerciais,
um desfile de publicidade e de novidades aberrantes, que é, em sua natureza, a
morte de tudo o que foi chamado de dignidade e modéstia por nossas mães e pais”
Se, por um lado,
existem as teorias coletivistas encarnadas na classe, no partido e na raça, por
outro lado existem as críticas produzidas pelas diversas segmentações
tradicionalistas, desde um radicalismo duginiano, até um islamismo esotérico,
passando pelo posicionamento clássico da Igreja, que também se afasta do
capitalismo e do comunismo, como se nota no magistério de Leão XIII. A
esquerda, ao se reconhecer como a proprietária de todas as críticas ao
individualismo e ao sistema de consumo, não admite que ela mesma alimenta
a esta dinâmica com o seu materialismo de base. A verdadeira transformação
virá com a práxis renovada do espírito, seja católica, islâmica, ortodoxa,
capaz de oferecer uma resposta total e completa à angústia da existência humana
moderna.
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