A noção de
Homem Perfeito (al-insánu 'l-kámil), um conceito que parece ter sido
inaugurado por Ibn Arabi por mais que seja uma apreensão intelectual tão antiga
quanto o próprio esoterismo, é de vital importância para o entendimento do
papel do Imam dentro da teologia espiritual xiita. Este Homem Perfeito, o
Antropos Côsmico, não é a humanização do divino, mas, isto sim, a divinização
do humano. O caminho se faz através do reconhecimento da unicidade essencial do
homem com o Ser Divino, em cuja semelhança ele é feito, seguindo a experiência
vivida pelos santos e profetas. Dentro da concepção xiita, o Imam, como
detentor do carisma da "walayah", é o "wali", o amigo de
Deus por excelência e em sua plenitude. Assim, portanto, é a fonte e cume da
iluminação divina e do conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, superando
o véu da realidade sensível. O primeiro Imam, enquanto modelo, é transmissor da
luz e entidade teofânica. Os seus sucessores herdam o seu carisma e a sua
missão espiritual.
O Ser Divino, em Sua essência, é absolutamente
transcendente e completamente Outro. Realidade inacessível e inalcancável em
sua mesmidade, a Sua profundidade jamais será compreendida ou apreendida, seja
pela racionalidade como pela elevação espiritual do homem. A essência de Deus é
uma realidade da qual apenas se pode tratar num discurso negativo, afirmando o
que não é. De fato, a tradição imânica desenvolveu uma série de negações de
Deus. Entretanto, se assim o fosse, o
agnoticismo seria a condição essencial da existência humana. Deus continuaria
em sua isolamento olímpico e pouco interessado em Sua criação. Apesar da sua
perfeita alteridade, quis Ele se revelar. As religiões reveladas admitem que o
Ser Divino, em seu projeto de amor e graça infinitas, quis se fazer conhecido,
tanto pelo esvaziamento dos Seus mistérios, como também pela revelação dos Seus
nomes e atributos. Através deste conhecimento
pode o homem mergulhar em Sua intimidade. Estas manifestações se transformaram
em veículos teofânicos, pontes de conexão entre os homens e o seu Criador.
Destarte, é possível fazer uma distinção de
dois níveis de conhecimento ontológico. Primeiramente, a profundidade
essencial, indescritível e desconhecida, numa dimensão vertiginosa da qual só é
possível adotar um discurso negativo. Em segundo lugar, o nível dos atributos e
dos nomes revelados por Deus, os quais são os órgãos que Ele mesmo utiliza como
condução do conhecimento dos homens ao Seu Ser. Dentro de tal perspectiva, o
Imam, como Homem Côsmico e lugar da manifestação de Deus por excelência, é o
veículo de comunicação e o Seu verdadeiro vigário (khalifat Allah). Uma associação
tão condicional que o sexto Imam Ja’far
al-Sadiq chegou a destacar que “nenhuma ação de um servo dedicado é aceita por Deus,
se não for acompanhada pelo conhecimento [dos Imames]”.
Toda esa concepção parte do entendimento xiita
de que a experiência religiosa se faz alicerçada numa dupla realidade: o “batin”
e o “zahir”, isto é, o escondido/esotérico e o aparente/exotérico. Enquanto o
sunismo cresceu fundamentado numa concepção jurídica, com a estruturação das
suas grandes escolas, e legando a vida mística para as tariqas de iniciados, o
xiismo sempre entendeu que ele, em sua totalidade, carrega esta dualidade entre
“sharia” e “haqiqah”. Se a “sharia” é o conjunto das leis islâmicas que regem todos
os aspectos da vida cotidiana, a nível social, econômico e político, a “haqiqa”
é, por sua vez, uma busca perpétua pela verdade simbolizada pela fórmula
inicial "La illaha illa Allah". A “haqiqa-batin” de Deus, ou seja, o
Seu aspecto esotérico, é a Sua essência desconhecida. Entretanto, o Imam,
enquanto veículo, é o Seu aspecto revelado, exotérico. Pode-se dizer que dentro
do Xiismo existe a dualidade entre o manifesto e o oculto. O “batin” é o
complemento ao “zahir”, já que pressupõe a este e possibilita o aprofundamento
a partir dos fundamentos deixados. O lado esotérico está associado ao caráter
iniciático, elitizado e particular, a esta fé (“iman”) que se afasta das
superficialidades das massas (“amma”). Ali
é um “wali”, enquanto Muhammad é um “Rasul”, isto é, detentor dos três níveis carismáticos
“Rasul-Nabi-Wali”.
O Imam, enquanto faceta do Deus que se revela,
conduz, através do seu conhecimento esotérico, ao conhecimento do conhecimento
exotérico de Deus, àquilo que é conhecível do Ser Divino. O Imam é, portanto, o
símbolo supremo, por ser uma realide teofânica daquilo que pode ser conhecido
de Deus, fonte esotérica do conhecimento exotérico. Disse o Imam Ali ibn Abu
Talib, no sermão 51 do livro Nahjul Balaghah:
“Certamente, os Imams são os Vicegerentes de Deus sobre Suas criaturas e eles fazem as criaturas conhecerem a Deus. Ninguém entrará no Paraíso, exceto aquele que os conhece e O conhece, e ninguém entrará no Inferno, exceto aquele que os nega e O nega.”
As afirmações dos Imames fazem parte de uma
grande tradição mística, também existente dentro do sunismo, que foi e continua
sendo alvo de grande polêmica. A "shath" é um transbordamento da
experiência íntima com Deus, na qual a alma e o Ser Divino, numa profunda
união, se confudem em suas respectivas identidades. Estas manifestações também
existem no misticismo cristão e são encontradas em autores como São João da
Cruz e Dionísio Aeropagita. As expressões extáticas podem ser vistas em
místicos como Bayazid Bastami ("Glória para mim, quão grande é minha
majestade") e Al-Hallaj ("Eu sou a verdade"). Consideradas
blasfemas e sacrílegas, estas afirmações, como destacado por Louis Massignon em
"Essai sur les origines du lexique technique de la mystique
musulmane", devem ser interpretadas como o Ser Divino que fala na primeira
pessoa nas palavras do místico em êxtase. No xiismo, contudo, este é, em certo
aspecto, o estado natural da condição carismática do Imamato. O Imam é o
veículo da revelação de Deus e por isso, comentando o versículo 39:69 - "E
a terra resplandecerá com a luz do seu Senhor" - Imam Ja'far la-Said
disse, "o Senhor da Terra é o Imam da Terra".
O lado exotérico da Verdade é manifestado
através da profecia (“nubuwwa”), direcionada à totalidade da humanidade (“amma”)
através do Livro Sagrado descido dos céus (“tanzil”). Já o lado esotérico da Verdade
é revelado pela missão carismática dos Imames (“walaya”), direcionada a uma
elite de crentes (“khassa”) através da interpretação do texto sagrado (“ta’wil”).
Muhammad é o cânone e cume do primeiro aspecto, enquanto Ali é a manifestação
plena do segundo aspecto. Vale destacar, porém, que o Profeta é também um “wali”
e, no caso do último Mensageiro, goza da plenitude de todo o cabedal da revelação. O carisma da “walaya”,
portanto, sempre acompanhou o carisma profético e com o advento do derradeiro
Livro não se rompeu esta dinâmica querida por Deus: Adão, Noé, Abraão, Moisés,
Jesus, Muhammad - Sete, Sem, Ismael, Aarão, Pedro, Ali. Como missão sagrada, a “walayah”
é a essência mesma do imamato, isto é, um poder sagrado por eleição divina. Sem
o aprofundamento místico possibilitado pelo Imam, o conteúdo mais íntimo da
Revelação continuaria desconhecido. O Imam é o Alcorão que fala, na medida em
que é a fonte da verdadeira interpretação (“ta’wil”) da Palavra (“tanzil”).
Essa dinâmica é uma constante em todo o processo de anúncio profético, na qual
os Mensageiros foram sucedidos por “walis” que mergulharam na mensagem
revelada. O Imam é, nesse sentido, o acesso ao conhecimento de Deus, o rosto
físico do Deus Revelatus, o “zahir” do Ser Divino. A Sua essência, o batin de
Deus, o Deus Absconditus, é a dimensão inacessível e inalcançavel. O Imam, como
lugar da manifestação de Deus, como veículo e órgão dos Seus atributos,
conecta-se diretamente com o o Homem Perfeito, que é a teofania absoluta como
manifestação do Ser.
A relação entre o profetismo e o imamato é
intrinseca. Primeiramente, a Luz Muhammadiana (Nur Muhammadi), equivalente ao
intelecto ativo do neoplatonismo, representa esta primeira criação/emanação de
Deus, em sua auto-manifestação como consciência divina, da qual os profetas são
revelações teofânicas. Este conceito sempre foi muito importante para as
teologias xiitas e sufis, que consideravam a profecia de Muhammad como o cume
do ofício espiritual profético, que começou com Adão, foi transmitida através
dos profetas hebreus e terminou no Mensageiro do Islã. Al-Hallaj, por exemplo,
é provavelmente o primeiro sufi a falar de um Logos islâmico e a atribuir a pre-existência
a Muhammad. Ele sustenta que Muhammad existiu antes da criação do mundo e que
seu nome era eterno antes mesmo de Deus gravar o Alcorão com Sua pena divina.
Na verdade, para Al-Hallaj, Muhammad era a "Luz infinita", mais
brilhante e mais eterna do que a própria palavra. Como o Selo dos Profetas,
Muhammad é a fonte de quem todos derivam sua mensagem divina. Embora ele fosse
fisicamente e temporariamente a última manifestação, sempre existiu. A missão
de Muhammad é eterna, já válida quando "Adão ainda estava entre a água e a
argila", enquanto os outros profetas começaram sua missão somente quando
Deus, no tempo, os escolheu e os enviou para realizá-la.
Os teólogos xiitas também sustentam, como os
sufis, que Muhammad foi a primeira criação de Deus, mas que, ao mesmo tempo,
Deus criou os Imames. Assim, a divina liberalidade de Deus se estende a estes e,
através deles, a toda a comunidade. Os xiitas sustentam que Muhammad foi o
Profeta por excelência e que a sua profecia foi o primeiro componente do
elemento criacional, enquanto os Imames são os verdadeiros expoentes do santo
ofício, constituindo o segundo componente. Sobre isso, disse Ruhollah
Khomeini, em “Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini”:
“É uma viceregência pertencente a toda a criação, em virtude da qual todos os átomos do universo se humilham diante do detentor da autoridade (...) Na verdade, de acordo com as tradições que nos foram transmitidas, o Mensageiro Mais Nobre (Muhammad) e os Imames existiram antes da criação do mundo sob a forma de luzes situadas sob o trono divino.”
Da sua própria vontade, Deus emanou esta Luz separada
em níveis de emanações. Este Logos é o espelho refletido de Deus, a Luz única
com duas dimensões : uma dimensão exotérica, que é a missão profética e uma
dimensão esotérica, que é a “walayah”, o amor divino investido no Imam. O
primeiro, a profecia-zahir, e o segundo, subordinado ao primeiro, o
imamato-batin. Esta luz, posta por Deus no primeiro homem, Adão, foi
transmitida numa cadeia geracional, atravessando tempos e histórias, produzindo
a sacralização da experiência humana. Esta viagem atingiu o seu ponto máximo ao
alcançar os seus veículos predestinados: Muhammad e Ali, as personagens
históricas que carregam o carisma. Num hadith contido em “Al-Amali” compilado
por al-Shaykh al-Tusi, Abu Dhar, um dos primeiros convertidos ao Islã e fiel
partidiário de Ali Ali bn Abu Taleb, relata-se:
“Juro por Deus que ouvi o Mensageiro de Deus, com os meus próprios ouvidos dizer - e que Deus me faça surdo se eu minto sobre isso: Ali e eu fomos criados a partir da mesma luz. Estávamos à direita do trono louvando a Deus dois mil anos antes de Deus criar nosso pai, Adão. E, quando Adão foi criado, Deus nos colocou em sua espinha dorsal e continuou nos movendo da espinha dorsal honorável para os úteros purificados até chegarmos à espinha dorsal de meu avô, Abdul Muttalib. Então Deus nos dividiu em duas metades e me enviou para a espinha dorsal de Abdullah e enviou Ali para a espinha dorsal de Abu Talib. Deus me escolheu para a profecia como uma misericórdia e uma benção, e escolheu Ali por sua coragem, conhecimento e eloquência. Deus derivou os nossos dois nomes de Seus próprios nomes. O dono do Trono é Mahmud e eu sou Muhammad; Deus é A'ala e este é Ali.”
Existe, portanto, duas genalogias distintas.
Há, por um lado, uma linha sucessória biológica e, ao mesmo tempo, uma uma
linha sucessória espiritual, que abarca a sucessão de Profetas e Imames, desde
Adão até Muhammad/Ali. Ainda dentro da leitura dual da realidade, pode-se dizer
que a descendência natural está para o aspecro exotérico-zahir, assim como a descendência
espiritual está para a noção esotérica-batin. Ambas tratam, contudo, do modo
como se deu a transmissão da luz profética-imâmica até a sua plenitude
bipartida nas figuras históricas de Muhammad e Ali. A permanência da luz na
cadeia sucessória dos Imames também é interpretada, segundo a percepção xiita,
como uma necessidade da condição criatural da terra: sem a existência do Imam,
responsável pelo aprofundamento e continuidade da mensagem profética, só
restaria a aniquilação. Vale destacar, como coloca Muhammad Baqir al-Sadr, em
seu "A treatise on the Walaya", que o Profeta escolheu Ali para esta
tarefa não por sua própria vontade, mas por ordem de Deus, que antes da criação
santificou e purificou a “Ahl al-Bayt” e por Sua providência confiou aos
membros da família de Muhammad o primado do governo e da sabedoria. Al-Sadr
está, de fato, reafirmando a tradicional crença xiita de que a
"walayah" não se originou na terra, mas no céu, isto é, a
"walayah" de Ali nasce da vontade do Ser Divino.
Assim, destarte, é possível falar da existência
de um Muhammad arquétipo, côsmico, esotérico, que num devido momento do tempo e
da história se manifestou exotericamente na figura física do Mensageiro do
Islã. Do mesmo modo, o Ali temporal é a emanação daquela luz da “walayah” que
existia dentro da eternidade muhammadiana. Essa “walayah” é, concluí-se, o imamato, o
amor ao imam e a teologia do Imam metafísico. Por isso que, dentro da concepção
xiita, a noção da “walayah” é indissociável da própria experiência de fé, já
que a vida do Islã depende da existência e da conformidade ao Imam do seu
tempo, assim como é este o responsável pela manutenção do ordenamento
espiritual-místico da comunidade. A vocação mais essencial dos fiéis é, por
conseguinte, a união íntima com esta Luz da “walayah”, que perpassou por
Profetas e Imames. Esta conexão espiritual é capaz de transformar crentes em
santos, amigos de Deus, à semelhança dos grandes luminares, numa vida íntima e
estreita com o Profeta do Islã e com a “Ahl al-Bayt”. A exemplo dos Companheiros
que abraçaram a tais ensinamentos, pode-se viver esta união e incorporar-se tão
misticamente a Muhammad e a sua Casa que ele repetirá as mesmas palavras
direcionadas a Salman al-Farsi: “Ele é um conosco”.
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